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domingo, 4 de agosto de 2013

HISTORIA TRISTE DE UMA MISS


Crédito desta materia transcrita na integra do Blog Beleza Sergipana, site: http://www.belezasergipana.com




Maio de 1965. Vinte e cinco mil pessoas lotavam o Maracanãzinho para acompanhar a disputa pelo título de Miss Estado da Guanabara. Vera Lucia Couto, Miss 1964, esperava a decisão dos 11 jurados para passar a faixa à sua sucessora. Duas louras ainda estavam no páreo: Maria Raquel de Andrade, representando o Botafogo, e Sonia Schuller, o Clube Caça e Pesca.

Quando Sonia começou a desfilar, a plateia veio abaixo. “Ela era ensolarada, cheia de energia e tinha um sorriso lindo”, lembra o advogado Daslan Mello Lima, criador de um blog sobre misses. “Foi um frisson incrível quando essa moça apareceu no palco”, lembra Vera Lucia Couto, hoje uma funcionária da Riotur. Sonia acabou não levando o título, mas, segundo a revista “Manchete” da semana seguinte, a catarinense que veio para Rio ainda criança recebeu “uma das maiores ovações da história do Maracanãzinho”.
Sonia Schuller (esquerda) Vera Lucia Couto (centro) 
e Maria Raquel de Andrade (direita)

Quarenta e oito anos depois, não ficou nada daquele sorriso que encantou Daslan e a multidão no ginásio. Sem nenhum dente na arcada superior e com a inferior em frangalhos, Sonia tem dificuldades até para comer o pastel chinês que o dono de um bar no Jardim de Alah dá a ela todos os dias. O salgado costuma ser sua única refeição. A ex-vicecampeã do Miss Guanabara e Sereia das Praias Cariocas de 1965 virou uma pedinte nas ruas de Ipanema, bairro onde mora.

 “Sonia sofre de esquizofrenia”, informa seu irmão, Cláudio Schuller. Ele conta que “a desgraça da vida dela começou em 1986”, depois que uma moto a atropelou, perto d Praça General Osório. Sonia atravessava a Rua Prudente de Morais, na esquina com a Teixeira de Melo, quando um motoqueiro ultrapassou um ônibus parado e a acertou em cheio. “Naquele dia, ela perdeu os dentes e a autoestima”, diz Cláudio.
Capa da revista "O Cruzeiro"

Filho mais velho da ex-miss, Bruno, de 46 anos, confirma o baque. “Dali pra frente tudo desandou.” Bruno, que há 19 anos mora em Curitiba, é fruto do curto relacionamento de Sonia com Sergio Petezzoni, um dos fundadores do Clube dos Cafajestes, de Copacabana. Nasceu e foi criado no apartamento 404 do prédio número 42 da Rua Barão da Torre, Ipanema, onde vivia com a mãe e a avó, a fisioterapeuta Antonia Schuller.

No último andar fica a famosa cobertura de Rubem Braga — que Sonia conhece bem. Ela e Rubem tiveram um namorico. “Era uma admiração mútua, ela vivia na casa dele”, conta Cláudio. “Eu ia lá para ler jornal, pegar uns livros”, conta a ex-Sereia, que, num batepapo na Visconde de Pirajá (seu habitat), alterna momentos de extrema lucidez com comentários que fazem pouco sentido e incluem ciborgues, androides e assuntos como “uma nova tecnologia que suga a energia e te deixa seca como uma ameixa”.
Sonia fuma seu cigarro, sentada na mureta da Praça N. Sra. da Paz
Ex-aluna do colégio N. Sra. Auxiliadora, na Tijuca, e do Melo e Souza, em Ipanema, Sonia não fez faculdade. “Achei que esse negócio de sereia era suficiente”, diz, coçando o dedão do pé esquerdo, com unhas enormes e empretecidas. “Minha mãe também achava. Mas olhaí, virei uma sereia desdentada.” 

Sentada na mureta da Praça Nossa Senhora da Paz, Sonia pede uma pausa na conversa para acender um Marlboro. No dedo indicador da mão direita há um anel igualzinho ao que Kate Middleton usou no noivado com o príncipe William, aquele mesmo anel que era de Lady Di. “É bijouteria, claro”, esclarece. O cigarro, ela conta, é sua perdição. É por ele que Sonia sai de casa todos os dias. Vai para as ruas pedir dinheiro para comprar pelo menos um maço.

A abordagem é direta, sem rodeios. Não fala que está com fome, não faz drama. “Oi, pode me dar um real?”. Também não conta que é para comprar cigarro. “Claro que não. É uma questão de ética.”

“Peço um real e vou juntando. Quando consigo comprar um maço, volto para casa”. Num desses dias, ela foi até o Leblon. Parou em frente à Padaria Rio-Lisboa e pediu dinheiro a um taxista. No balcão, seu irmão, Cláudio, tomava café e fingiu que não a conhecia. “Fiquei constrangido”, diz. Numa outra vez, Cláudio, que mora em Friburgo e vem ao Rio com frequência, estava no supermercado Zona Sul e a viu, também na porta, (“ela não entra nos lugares, fica só na porta”) falando sozinha. “Me senti mal, claro. Mas a chamei de volta para casa.” É ele também quem paga o condomínio do apartamento.

A derrocada da ex-Sereia começou mesmo quando ela perdeu o emprego de executiva de marketing no BarraShopping, no início dos anos 80, pouco depois da morte do pai. “Lembro dela nesta época do shopping, linda, saindo de carro, salto agulha e tailleur”, diz o vizinho Mario Vicenzio Cardillo.

Desempregada, Sonia passava temporadas entre Mirantão, em Visconde de Mauá, e Maricá, na Região dos Lagos. Voltava para o apartamento da Barão da Torre com frequência, mas gostava de ficar nessas cidades com seus bichos. A casa de Ipanema chegou a ter quase 50 cachorros, a maioria da raça pointer. E também gatos, muitos gatos. “Eu ia à feira e voltava com dois baldes de cabeça de peixe para dar para eles”, lembra Cláudio.

A família reparou que alguma coisa não estava bem quando Sonia passou a falar sozinha. Fazia isso com frequência. Também começou a riscar as paredes com carvão. Chegava em casa com cabos de vassoura e sacolas cheias de lixo recolhido na rua. Foi com esse pano de fundo, bem nessa fase sinistra, que a moto a atropelou. “Foi demais para ela”, diz Mario, o vizinho e fã, que mora no primeiro andar.

Ele, que aos 7 anos foi com a mãe ao Maracanãzinho torcer por Sonia no concurso de Miss, não acreditava no que via. “Ela estava toda quebrada, sem os dentes, irreconhecível.” Sonia chegou a botar uma prótese na arcada superior, mas anos depois tirou.

No final dos anos 90, ela chegou a passar duas semanas internada no Instituto Pinel, onde foi diagnosticada a esquizofrenia. Como não tomou os remédios prescritos, voltou à estaca zero. Desde então, vive de caminhar, em andrajos, pelas ruas de Ipanema, em busca de dinheiro para o cigarro. Faz colagens com papéis e revistas que recolhe nos lixos e quer publicar um livro. “Mas sem ninguém dizer como tem que ser. Livro artesanal mesmo.”

Quem a conhece diz que Sonia piorou ainda mais desde que a mãe morreu, há dois anos. Ela estaria mais triste, ficando mais tempo fechada no apartamento, entulhado de coisas que pega na rua. Sonia usa o elevador e a entrada de serviço do prédio onde mora com o filho mais novo, o estudante de Direito Igor, nascido um ano depois do acidente.

A ex-Sereia das praias cariocas só dorme na cama de massagem da mãe, talvez para tentar manter algum contato com ela. Perguntada sobre o que a deixaria feliz, nem pensa duas vezes. “Meu sonho dourado é um empadão de camarão com chopinho bem gelado.” 

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